COLABORADORES
Capa Christiane Monnerat
Foto Alex Curty
Beleza Júlia Helena
Styling Márcia Dorneles
Assessoria Marcia Dornelles Comunicação
Look Men a Rigor
Agradecimento Hotel Bossa Nova Ipanema
Procuradora de justiça lança seu primeiro livro Crime e Latido
Dedicada há décadas à defesa dos direitos dos animais dentro do Ministério Público, a procuradora Christiane Monnerat marca agora um novo capítulo na sua trajetória. No próximo dia 29 de setembro, ela lança seu primeiro livro, Crime e Latido, na Livraria da Travessa da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Além do livro, Christiane também inaugura seu Instagram @literaturadosautos, que em poucos dias de existência já ultrapassou 10 mil seguidores. O perfil tem como objetivo divulgar suas obras literárias, compartilhar bastidores da escrita e mostrar suas viagens de imersão para pesquisa e criação literária.
A obra, que mescla memórias, casos jurídicos e reflexões sobre ética, justiça e compaixão, nasce da vivência de quem transformou dor em missão e fez da sua profissão um chamado. Conhecida por episódios emblemáticos, como o resgate dos cavalos da Ilha de Paquetá e também pelo apelido “maluca do au-au”, que ressignificou com orgulho, Christiane construiu uma trajetória marcada por coragem, polêmicas e resiliência.
“Melhor ser uma maluca com lança nas mãos do que uma cínica de braços cruzados”, afirma a procuradora, que agora transforma suas experiências em literatura.
Na entrevista a seguir, Christiane fala sobre os momentos mais difíceis e simbólicos de sua carreira, revela suas inspirações e deixa uma mensagem poderosa à promotora iniciante que um dia sonhou em mudar o mundo.
Dra. Christiane, o que despertou em você a paixão pela causa animal e o desejo de lutar pelos direitos dos animais dentro do Ministério Público?
Desde a infância, a dor dos animais me atravessa de forma profunda. Mas foi no exercício do cargo que ocupo que essa compaixão se transformou em missão. Não foi uma escolha consciente no início, foi quase um chamado. A cada inquérito, a cada laudo, a cada imagem de um animal negligenciado ou torturado, fui compreendendo que aquela pauta não era periférica. Era essencial. Era sobre a dignidade dos animais.
Durante sua atuação na proteção do meio ambiente, especialmente no caso da Ilha de Paquetá, houve grande repercussão midiática. Como a senhora lidou com as críticas e o apelido “maluca do au-au”?
Lidei com ironia e resiliência. No início, confesso que o rótulo “maluca do au-au” me feriu profundamente. Parecia (e era) uma tentativa tosca e barata de ridicularizar um trabalho sério. Mas, com o passar do tempo, compreendi que a forma descortês com que tentaram me depreciar falava mais sobre o incômodo que eu causava em certos círculos.
Se defender os animais é loucura, então eu assino embaixo. A “maluca” que invadiu a Ilha de Paquetá, empunhando um fuzil e um celular, não era uma caricatura. Era o retrato verdadeiro de alguém que ainda detinha o mínimo de sanidade dentro de um sistema burocrático engessado e se recusava a compactuar com o silêncio e a omissão velada.
Eu me apropriei da alcunha, a ressignifiquei e segui adiante. A “maluca do Au-Au” tornou-se parte integrante da minha personalidade, uma entidade quase mística, quixotesca e parente distante das Bruxas de Salém. Aquela que desafia e não recua diante das causas perdidas, que entra na arena principalmente e, inclusive, sozinha.
Hoje, não somente aceito a “maluca do au-au”, como a reverencio. Ela caminha ao meu lado com as patas sujas de barro e alma repleta de compaixão. Ela me aconselha e escreve a sua trajetória através da minha mão. Habita meus silêncios, me recorda das quedas, não me julga e é a razão pela qual tantos cavalos caminham livres hoje. Essa outra faceta da minha alma representa a minha entrega: a coragem de seguir lutando, mesmo porque a vida dos cavalos não podia esperar pela burocracia.
O resgate dos cavalos em Paquetá foi um marco. Poderia compartilhar quais foram os maiores desafios e aprendizados desse episódio?
A Ilha de Paquetá me ensinou que a realidade pode ser mais dantesca do que qualquer obra literária. O maior desafio foi emocional: testemunhar um cavalo morrendo lentamente à minha frente, em meio à lama, ao descaso, ao cheiro de carniça naquela pocilga travestida de baia, me tirou o chão. Eu nunca mais fui a mesma Christiane depois desse episódio.
Naquele momento, o que se passou não foi uma operação formal, foi um grito desesperado e doído de pura indignação. Sim, me apropriei (literalmente) do fuzil do piloto e proclamei que ninguém sairia daquela ilha até a identificação do proprietário do animal morto.
A burocracia inerente ao sistema foi outro obstáculo. Tentaram travar a retirada dos cavalos com laudos veterinários e protocolos ultrapassados e inúteis. Aprendi que a fé, a improvisação e a coragem, ainda que encaradas como desatino na área jurídica sob o ponto de vista do rigor formal, são as únicas ferramentas eficazes diante da negligência institucional.
E se hoje a tração animal em Paquetá é coisa do passado, é porque o ser que habita os recônditos da minha existência, minha fiel companheira, ela mesma, a “maluca do au-au”, não arredou o pé.
Ao longo dos anos, a senhora enfrentou muitas polêmicas e resistências. Houve momentos em que pensou em desistir da causa?
Sem dúvida. Quando iniciei a minha carreira, a pauta ambiental era frequentemente tratada como perfumaria institucional, algo muito bonito nos discursos, mas muito pouco efetivo na prática. A legislação era fragmentada, os órgãos ambientais engessados e o próprio Ministério Público ainda não enxergava a pauta animal como expressão concreta de cidadania.
Mas a maioria dos Procuradores-Gerais sempre apoiou a minha luta. Hoje, pelo menos no plano normativo, houve uma evolução, embora se refira apenas a cães e gatos. Com a nova pena, o crime deixou de ser considerado de menor potencial ofensivo, eliminando, assim, a possibilidade de medidas despenalizadoras como transação penal.
No segundo capítulo do livro, eu abordo esse tema. O sargento da Aeronáutica que esquartejou um filhote de gato, exibiu em uma mesa natalina nas redes sociais e foi agraciado com o pagamento de uma cesta básica é um exemplo gritante.
Mas entre a lei e a prática, ainda mora uma floresta de contradições. A consciência ambiental parece ter evoluído, em especial entre as novas gerações, mas ainda convivemos com paradoxos. Um papagaio é um bem ambiental inalienável, mas um político corrupto pode ser reintegrado com pompa ao serviço público. Uma samambaia acidentalmente tombada gera verificação de procedência da informação (VPI). Já um animal retirado à força do seu lar afetivo ainda é tratado como objeto sem valor moral.
Ainda assim, sigo esperançosa. Nem sempre otimista como quem faz palavra cruzada com caneta, mas esperançosa. Se for para ser chamada de “maluca do au-au” outra vez, que seja pelo motivo correto: continuar acreditando que empatia também é critério de civilização.
Quem foram suas maiores inspirações pessoais e profissionais nessa jornada em defesa dos animais?
Incrivelmente, minhas maiores inspirações vieram da literatura russa, em especial de Fiódor Dostoiévski. No livro Crime e Castigo, há uma passagem profundamente simbólica em que uma égua velha é cruelmente chicoteada até a morte. A cena que impactou o protagonista Raskólnikov me marcou igualmente quando a li nos bancos da faculdade. Chorei como se a dor fosse minha.
Quando me deparei, muitos anos depois, já como Promotora de Justiça, com o cenário real de um cavalo idoso sendo punido por sua própria exaustão na Ilha de Paquetá, aquela imagem literária voltou com toda a força. A literatura, nesse instante, não era mais ficção do século XIX, mas uma lente para decifrar a brutalidade humana e também um espelho do absurdo que muitos insistem em normalizar.
Era um Brasil do século XXI me cobrando uma resposta. E ali nasceu a certeza de que a defesa dos animais não era apenas uma opção, mas um destino.
Compreendi que meu compromisso com a causa animal não era apenas jurídico ou institucional, mas existencial. Dostoiévski me ensinou, por vias indiretas, que a empatia verdadeira nasce quando enxergamos no outro, mesmo e principalmente quando seja um cavalo exausto, o reflexo de nossa própria condição moral. A frase do livro “Minha propriedade”, dita pelo carroceiro que espancava a égua senil, se tornou o bordão macabro da indiferença institucional que enfrentei por anos.
Hoje, olhando para trás, o que a senhora diria à jovem promotora que iniciou sua carreira cheia de sonhos e ideais?
Eu diria: prepare-se. Os sonhos são legítimos, mas a realidade vai testar cada um deles nos mínimos detalhes. Alguns não sobreviverão. Diria também que lutar por uma causa nobre não garante plateia, status ou reconhecimento. Na maioria das vezes, significa andar sozinha, ouvindo apenas o som das próprias convicções.
À jovem promotora cheia de ideais, eu diria que nem sempre haverá justiça, mas sempre deve haver coragem; que a causa animal, aparentemente menor diante das grandes tragédias humanas, é, na verdade, o retrato mais fiel do quanto ainda precisamos evoluir enquanto civilização.
Diria, ainda, que os “não” serão muitos, os olhares tortos virão de onde menos se espera, a maledicência reinará no gabinete vizinho e que o apelido “maluca do au-au” será apenas o primeiro rótulo. Mas, no fim, quando o último cavalo subir na balsa e deixar para trás as ruas de barro marcadas pela tortura e pela dor, ela vai entender que tudo valeu a pena. E talvez, somente talvez, descubra que a maluca era, na verdade, a única em sã consciência.
Siga a Procuradora Christiane Monnerat no Instagran